Coluna

Chefe do MPF no Pará adverte sobre “violação de direitos no bilionário mercado de carbono”

Quase 40 entidades divulgam carta questionando contrato assinado pelo governo do Pará; procurador federal destaca surgimento de fenômeno conhecido como ‘grilagem do carbono’.

15/10/2024, 07:52 / Por Olavo Dutra | Colaboradores

Chefe do MPF no Pará adverte sobre “violação de direitos no bilionário mercado de carbono”

 

mercado de carbono não pode ser mais um instrumento de violação de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais”. A advertência partiu do procurador-chefe do Ministério Público Federal no Pará, Felipe Moura Palha, ao participar do painel da Oficina Técnica “Salvaguardas Socioambientais em programas de Redd+ e projetos de carbono florestal”, da última terça-feira, 8, ao dia 10, promovido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática. 


Acordo assinado pelo governo do Pará contraria interesses dos povos tradicionais e atropela lei estadual e tratado internacional/Fotos: Divulgação-MPF-Agência Pará.

Parece um recado; e é. No dia 24 de setembro, o governador do Pará, Helder Barbalho, do MDB, anunciou, durante a Semana do Clima, em Nova York (EUA), o que foi chamado de “um acordo histórico”, ao vender quase R$ 1 bilhão em créditos de carbono e garantir financiamento para apoiar a redução do desmatamento na Amazônia. Com isso, e segundo a comunicação do governo do Estado, “o Pará se tornou o primeiro Estado no Brasil e o primeiro estado subnacional do mundo a coordenar essa ação”.  

 

À época, protestos tímidos de organismos em defesa dos indígenas brasileiros foram ouvidos, mas ignorados. Somente terça-feira da semana passada, dia 8, 38 entidades divulgaram uma carta contra a medida.  

 

Violação de direitos

 

O documento afirma que a assinatura desse acordo representa uma clara violação de direitos dos povos e comunidades tradicionais à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, que é um direito internacional que assegura a esses segmentos sejam consultados de forma autônoma e sem coação antes da implementação de projetos que possam impactá-los.  

 

A consulta deve incluir informações claras e acessíveis, permitindo que as comunidades compreendam as implicações, em um processo essencial para respeitar a autodeterminação e os direitos desses povos, promovendo um diálogo justo com autoridades e empresas. No entanto, o acordo firmado pelo governo do Pará não respeitou esses princípios. 

  

A carta assinada por 38 entidades diz que “é urgente avançar nas lutas concretas em defesa dos povos e comunidades tradicionais, bem como de todos os seres vivos que formam a comunidade que sustenta a Mãe Terra. É inaceitável que o governo do Pará tome decisões sem consultar as comunidades tradicionais, que são as maiores protetoras das florestas e, ainda assim, as mais afetadas pela ausência de políticas eficazes de adaptação climática”. 

 

Atropelando regras 

 

O documento indica que o governo do Pará, ao buscar financiamento internacional de crédito de carbono com a coalizão LEAF - iniciativa pública e privada que inclui diversas grandes corporações e os governos da Noruega, Reino Unido, Estados Unidos e República da Coreia -, não observou o inciso II do artigo 2º da Lei Estadual Ordinária número 8.602, de 11 de janeiro de 2018, que instituiu a Política de Socioeconomia do Estado. 

 

Essa política considera como princípio a valorização da diversidade e respeito aos povos indígenas, preservando a identidade cultural e o saber tradicional, na forma de medidas protetivas de suas práticas sociais, religiosas e culturais, de acordo com o que orienta a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. 

 

Direito de escolha 

 

A Convenção 169 estabelece que os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, suas instituições representativas, cada vez que estejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis que possam afetá-los diretamente. 

 
A convenção também preconiza que os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento, na medida em que venham a afetar as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural, com participação na formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional apresentados.

 

A ideia geral é de que o governo do Pará se precipitou em buscar o financiamento de crédito de carbono, atropelando tanto a lei estadual quanto a da Convenção 169. 

 

Compra e venda 

 

O Pará celebrou o acordo “Contrato de Compra e Venda de Reduções Certificadas de Emissão (Erpa na sigla em inglês)” com a Emergent, coordenadora da Coalizão LEAF, que prevê a compra milhões de créditos de carbono florestal de alta integridade, gerados por reduções no desmatamento de 2023 a 2026. Cada crédito representa uma tonelada métrica de reduções de emissões de carbono resultantes de cortes no desmatamento, e será comprado ao preço de US$ 15 por tonelada. 

 

A Coalizão LEAF fornece financiamento para apoiar os governos florestais e as comunidades locais em seus esforços para reduzir o desmatamento e a degradação florestal. Os compradores são a Amazon, Bayer, BCG, Capgemini, H & M Group, Fundação Walmart e outras, que se comprometeram a comprar 5 milhões de créditos.  

 

O acordo também disponibilizará mais 7 milhões de créditos para compradores corporativos adicionais, com a Emergent antecipando uma forte demanda. O acordo foi respaldado por garantias de compra dos governos da Noruega, Reino Unido e EUA, cobrindo uma porcentagem dos volumes de créditos. 

 

Futuras emissões

 

O contrato prevê a compra e venda futura de emissões reduzidas, conhecidas popularmente como créditos de carbono jurisdicionais, sendo que a captação de recursos se dá no mercado voluntário. Os recursos serão utilizados a partir de 2025, para financiar programas que visam reduzir o desmatamento, além de apoiar o modo de vida dos povos tradicionais e o desenvolvimento sustentável.  

 

Em entrevista em Nova York, em setembro, o governador Helder Barbalho informou que a empresa Art Trees projetou que a redução das emissões no Pará até 2027 deve chegar a 390 milhões de toneladas já verificadas. Helder também disse que o acordo de 12 milhões de toneladas vai gerar cerca de R$ 1 bilhão em receitas, que serão distribuídas entre as comunidades tradicionais, “entre aqueles que colaboram com a preservação e para que o Estado continue com sua agenda de redução do desmatamento”.  

 

‘Grilagem de carbono’

 

Quanto à advertência do chefe do MPF, Felipe Moura Palha, “uma das principais preocupações no mercado de carbono é que não seja mais uma forma de impulsionar a apropriação privada de terras públicas, fenômeno conhecido como ‘grilagem do carbono’, cuja ação pode agravar uma das maiores problemáticas existentes na Amazônia: a ausência de regularização fundiária, especialmente de territórios tradicionais - demarcação de terras indígenas, quilombolas e outras’’’.

 

Só faltou combinar


O único problema do “sonho americano” na Amazônia é que “faltou combinar com o adversário” - no caso, as entidades indígenas e quem mais se sente prejudicado ou ignorado pela ação do governo do Pará.

Chefe do MPF no Pará adverte sobre “violação de direitos no bilionário mercado de carbono”