mercado de carbono não pode ser mais um instrumento de violação de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais”. A advertência partiu do procurador-chefe do Ministério Público Federal no Pará, Felipe Moura Palha, ao participar do painel da Oficina Técnica “Salvaguardas Socioambientais em programas de Redd+ e projetos de carbono florestal”, da última terça-feira, 8, ao dia 10, promovido pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática.
Parece um recado; e é. No dia 24 de
setembro, o governador do Pará, Helder Barbalho, do MDB, anunciou, durante
a Semana do Clima, em Nova York (EUA), o que foi chamado de “um acordo
histórico”, ao vender quase R$ 1 bilhão em créditos de carbono e garantir
financiamento para apoiar a redução do desmatamento na Amazônia.
Com isso, e segundo a comunicação do governo do Estado,
“o Pará se tornou o primeiro Estado no Brasil e o primeiro
estado subnacional do mundo a coordenar essa ação”.
À época, protestos tímidos
de organismos em defesa dos indígenas brasileiros foram ouvidos,
mas ignorados. Somente terça-feira da semana passada, dia 8, 38 entidades
divulgaram uma carta contra a medida.
Violação de direitos
O documento afirma que a
assinatura desse acordo representa uma clara violação de direitos dos
povos e comunidades tradicionais à consulta livre, prévia, informada e de
boa-fé, que é um direito internacional que assegura a esses segmentos
sejam consultados de forma autônoma e sem coação antes
da implementação de projetos que possam impactá-los.
A consulta deve incluir
informações claras e acessíveis, permitindo que as comunidades
compreendam as implicações, em um processo essencial para
respeitar a autodeterminação e os direitos desses povos, promovendo
um diálogo justo com autoridades e empresas. No entanto, o acordo
firmado pelo governo do Pará não respeitou
esses princípios.
A carta assinada por 38 entidades diz
que “é urgente avançar nas lutas concretas em defesa dos povos e
comunidades tradicionais, bem como de todos os seres vivos que formam
a comunidade que sustenta a Mãe Terra. É inaceitável que o
governo do Pará tome decisões sem consultar as comunidades
tradicionais, que são as maiores protetoras das florestas e,
ainda assim, as mais afetadas pela ausência de políticas
eficazes de adaptação climática”.
Atropelando regras
O documento indica que o governo
do Pará, ao buscar financiamento internacional de crédito de carbono
com a coalizão LEAF - iniciativa pública e privada que inclui
diversas grandes corporações e os governos da Noruega, Reino Unido, Estados
Unidos e República da Coreia -, não observou o inciso II do artigo 2º da Lei
Estadual Ordinária número 8.602, de 11 de janeiro de 2018, que
instituiu a Política de Socioeconomia do Estado.
Essa política considera como
princípio a valorização da diversidade e respeito aos povos indígenas,
preservando a identidade cultural e o saber tradicional, na forma de medidas
protetivas de suas práticas sociais, religiosas e culturais, de acordo com o
que orienta a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
da qual o Brasil é signatário.
Direito de escolha
A Convenção 169 estabelece que
os governos deverão consultar os povos interessados, mediante procedimentos
apropriados e, particularmente, suas instituições representativas, cada
vez que estejam previstas medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis que possam afetá-los diretamente.
A convenção também preconiza que os povos interessados deverão ter o direito de
escolher suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento, na
medida em que venham a afetar as suas vidas, crenças, instituições
e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma
forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento
econômico, social e cultural, com participação na formulação,
aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e
regional apresentados.
A ideia geral é de que
o governo do Pará se precipitou em buscar o financiamento de
crédito de carbono, atropelando tanto a lei estadual quanto a
da Convenção 169.
Compra e venda
O Pará celebrou o
acordo “Contrato de Compra e Venda de Reduções Certificadas de Emissão (Erpa na
sigla em inglês)” com a Emergent, coordenadora da Coalizão LEAF, que prevê
a compra milhões de créditos de carbono florestal de alta integridade, gerados
por reduções no desmatamento de 2023 a 2026. Cada crédito representa uma
tonelada métrica de reduções de emissões de carbono resultantes de cortes no
desmatamento, e será comprado ao preço de US$ 15 por tonelada.
A Coalizão LEAF fornece financiamento
para apoiar os governos florestais e as comunidades locais em seus esforços
para reduzir o desmatamento e a degradação florestal. Os
compradores são a Amazon, Bayer, BCG, Capgemini, H & M
Group, Fundação Walmart e outras, que se comprometeram a
comprar 5 milhões de créditos.
O acordo também disponibilizará mais
7 milhões de créditos para compradores corporativos adicionais, com a Emergent
antecipando uma forte demanda. O acordo foi respaldado por garantias
de compra dos governos da Noruega, Reino Unido e EUA, cobrindo uma porcentagem
dos volumes de créditos.
Futuras emissões
O contrato prevê a compra e
venda futura de emissões reduzidas, conhecidas popularmente como créditos
de carbono jurisdicionais, sendo que a captação de recursos se dá no
mercado voluntário. Os recursos serão utilizados a partir de 2025, para
financiar programas que visam reduzir o desmatamento, além de apoiar o
modo de vida dos povos tradicionais e o desenvolvimento
sustentável.
Em entrevista em Nova York, em
setembro, o governador Helder Barbalho informou que a empresa
Art Trees projetou que a redução das emissões no Pará até
2027 deve chegar a 390 milhões de toneladas já verificadas. Helder
também disse que o acordo de 12 milhões de
toneladas vai gerar cerca de R$ 1 bilhão em receitas, que serão
distribuídas entre as comunidades tradicionais, “entre aqueles que
colaboram com a preservação e para que o Estado continue com sua agenda de
redução do desmatamento”.
‘Grilagem de carbono’
Quanto à advertência do chefe do MPF,
Felipe Moura Palha, “uma das principais preocupações no mercado de carbono é
que não seja mais uma forma de impulsionar a apropriação privada de terras
públicas, fenômeno conhecido como ‘grilagem do carbono’, cuja ação pode agravar
uma das maiores problemáticas existentes na Amazônia: a ausência de
regularização fundiária, especialmente de territórios tradicionais - demarcação
de terras indígenas, quilombolas e outras’’’.
Só faltou combinar
O único problema do “sonho americano”
na Amazônia é que “faltou combinar com o adversário” - no caso, as
entidades indígenas e quem mais se sente prejudicado ou ignorado pela ação do
governo do Pará.