uso de patentes militares e de forças de segurança como nomes próprios em campanha eleitoral é uma jabuticaba: coisa que se originou no Brasil. Em democracias maduras, essa é uma prática inexistente. Nos Estados Unidos, por exemplo, John McCain, senador republicano longevo e candidato à presidência em 2008, era capitão da Marinha, um herói de guerra que jamais capitalizou sua patente para fins eleitorais.
Para se ter ideia, nas últimas eleições nacionais, 8% dos 961 candidatos militares que disputaram foram eleitos. Ao todo, em um levantamento que considerou apenas os que se declararam militares, foram apontados pelo menos 79 nomes confirmados no Congresso Nacional e assembleias legislativas. Nos Estados, o número passou de 60 parlamentares.
Prerrogativa do Estado
Patentes militares e títulos de forças de segurança não são propriedades individuais. Eles são atribuições funcionais conferidas pelo Estado. Diferentemente de um médico ou professor, um militar ou policial só "é" sua patente enquanto estiver sob a tutela do Estado. Fora dessa estrutura, a patente perde sua validade. Não se pode ser "Capitão" no âmbito privado. O uso eleitoral desses títulos borra as fronteiras entre a função pública e o interesse privado, oferecendo ao eleitor uma “expertise” que é inerente ao cargo, não à pessoa. Em democracias avançadas, a ideia de um candidato se autopromover como "Capitão Smith", por exemplo, é impensável. A honra à patente é cultivada no serviço, não como artifício para votos. No Brasil, essa distinção se perdeu, e a patente virou um "nome de guerra" eleitoral.
Menos segurança
É notável o paradoxo entre o crescente número de representantes das forças de segurança eleitos e o agravamento da crise de segurança pública. Se a premissa de que esses profissionais teriam a solução para a criminalidade fosse verdadeira, o Brasil estaria mais seguro. No entanto, o que se observa é o oposto. Nunca tantos militares e policiais ocuparam cargos políticos, e nunca o País foi tão assolado pela criminalidade.
Isso desafia a narrativa de que a simples presença de "homens de segurança" na política resultaria em maior segurança. A realidade mostra que, uma vez empossados, a totalidade desses representantes desvia o foco da pauta da segurança pública para se dedicar à "guerra cultural" e às suas ideologias reacionárias. A agenda prioritária frequentemente se concentra na flexibilização do porte de armas e na propagação de discursos de ódio, em vez de abordar a complexidade da segurança pública, que envolve investimento social, inteligência policial e desarticulação de redes criminosas.
Foco desvirtua pauta
A eleição de militares e membros das forças de segurança ancorados em suas patentes via de regra culmina em um mandato que negligencia as reais necessidades da segurança em favor de um estreito escopo ideológico. A promessa de "lei e ordem" na maioria das vezes se traduz em propostas punitivistas superficiais, ignorando as raízes da violência, como a desigualdade social.
A "guerra cultural" se a principal bandeira. O ataque a "ideologias de gênero" e a defesa de valores ultraconservadores são priorizados em detrimento de discussões sérias sobre orçamento para segurança, educação para a cidadania e capacitação policial. Essa agenda ideológica não apenas desvia recursos, mas também contribui para a polarização social. A defesa de um estado policial e a exaltação da violência como método de resolução de conflitos são reflexos de uma visão equivocada e perigosa da segurança, que não se coaduna com os princípios de uma democracia que valoriza a vida e a liberdade.
Democracia ‘madura’?
A proibição do uso de patentes militares como nomes de fantasia eleitorais, como em democracias avançadas, seria um passo importante para a maturação da democracia brasileira. Isso não desmerece o serviço prestado por militares, mas reconhece que a política exige uma atuação diferente, que transcende a hierarquia da caserna, e preserva ao estado as patentes que lhes pertencem por direito.
Da mesma forma como é impensável que um magistrado leve para as urnas seu cargo, também deve ser impensável ver patentes e uniformes militares sendo usados como panfletos eleitorais.
Ao desvincular a identidade eleitoral da patente, forçaríamos os candidatos a se apresentarem com base em suas propostas e ideias. A eleição deixaria de ser um concurso de popularidade baseado em um título de estado e se tornaria um debate mais substantivo. Além disso, reduziríamos a tentação de militarizar a política e de politizar as forças de segurança. A separação entre o serviço público e a ambição eleitoral é essencial para a integridade das instituições.
A experiência brasileira demonstra que o excesso de "militares" na política, usando suas patentes como chamariz, não se traduz em mais segurança. Pelo contrário, tem sido um vetor de aprofundamento da crise, com a pauta da segurança sendo sequestrada por interesses ideológicos. Está passando da hora de exigir que "Capitães" ou "Delegados", se apresentem nas urnas como cidadãos dispostos a servir a nação com propostas, e não com títulos que não são seus.