Rio de Janeiro, RJ - Apresentado no fim de 2024 e em tramitação no Senado, o projeto que muda o Código Civil prevê a eliminação de uma barreira para a doação de órgãos no Brasil. Se a pessoa tiver deixado registrada a intenção de ser um doador, o procedimento não poderá mais ser impedido pela família, como é possível atualmente.
Segundo o Ministério da Saúde, em 2023, nas 8.180 entrevistas com parentes para autorizar a doação, houve 3.465 recusas, o equivalente a 42,4% do total.
Em março do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Colégio Notarial do Brasil lançaram um dispositivo que facilita o registro da vontade de doação em cartórios: a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo), que pode ser dada pelo aplicativo e-notariado ou pelo site aedo.org.br.
A partir do preenchimento de um formulário, um tabelião confirma a intenção de doar e ambos assinam digitalmente a autorização, que vai para um banco de dados. Após o falecimento de um doador, os médicos credenciados podem verificar se ele assinou o documento.
Mas a facilitação proporcionada pelo Aedo não eliminou a necessidade de autorização da família. A entrevista com parentes é feita por equipes especializadas que acompanham os casos nas Unidades de Tratamento Intensivo dos hospitais, ao identificarem um potencial doador.
O Relatório de Doação do Ministério da Saúde de 2023 aponta que o Centro-Oeste é a região do país onde houve mais negativas (58,9%), seguida do Norte (57,9%) e do Nordeste (55,7%). No Sul e Sudeste, os percentuais de recusa são de 34,8% e 35,2%, respectivamente.
O fim da necessidade da entrevista valerá para o artigo 14 do Código Civil, que diz ser válida a “disposição gratuita do próprio corpo” após a morte para fins científicos e altruísticos. Para a professora de Direito Civil da Universidade Federal de Minas Gerais Elena Gomes, será uma “alteração positiva”.
“Será respeitada a vontade da pessoa ainda que ela não esteja mais aqui”, resume a professora. “Se ela se colocou a favor da doação, é mais do que razoável que essa sua vontade seja respeitada, assim como é respeitada a vontade testamentária dela quanto ao próprio patrimônio”,o3s compara.
A especialista em bioética Carla Carvalho, também professora da UFMG, apoia a mudança, e lembra que, caso não haja a manifestação expressa, o parente continua sendo consultado.
“O familiar tem que ser chamado para se manifestar para ajudar a entender o que queria o familiar quando ele não deixou por escrito”, recomendou. “A vontade, no que diz respeito à existência, tem de ser do próprio sujeito”, resume a especialista.
Ex-presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, o nefrologista Gustavo Fernandes Ferreira acredita que há uma tendência das equipes acabarem respeitando o posicionamento do parente presente na morte do doador e prefere apostar no convencimento:
“Devemos ir no caminho que sempre fomos, da conscientização. Achamos que a discussão deva ser com a família, com todo mundo. O nosso programa de transplantes é forte, resistente e sempre saiu vitorioso”.
Recusa a tratamento
Outra alteração tratada no projeto que muda o código diz respeito à recusa de tratamento médico. O artigo 15 do Código Civil, de 2002, já previa a possibilidade de recusa. Mas o texto em debate suprime a expressão “com risco de vida” da frase “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Para Gomes, a alteração elimina uma dúvida.
“Esse trecho fez com que parte da doutrina interpretasse que, se o tratamento não ocasiona risco de vida, o paciente não tem voz e o médico pode seguir na contramão da sua vontade, o que, do ponto de vista bioético, é inaceitável”, explica a professora da UFMG.
O projeto também permite que pacientes deixem orientações antecipadas quanto a desejarem ou não se submeter a determinados tratamentos médicos e cirúrgicos em situações futuras de incapacidade, e indicar um representante para a tomada de decisões a respeito da saúde, com validade de cinco anos.
O novo Código Civil também deverá determinar que a recusa a se submeter à internação hospitalar, intervenção cirúrgica, exame e tratamento médico deve ser tomada por pacientes “plenamente informados por médicos sobre os riscos atuais de morte e agravamento de seu estado de saúde”. A decisão caberá apenas a maiores de idade que não sejam considerados incapazes ou relativamente incapazes.
Para especialistas, a redação proposta consolida práticas já aceitas na Justiça e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em 2006, o conselho já havia acolhido a ortotanásia, como a prática é conhecida. Seis anos depois, passou a admitir a validade das manifestações antecipadas de quem optou pela recusa de determinados tratamentos.
“Antes tínhamos uma visão muito protetiva, com influência religiosa, na qual se levava a vida adiante a qualquer custo, ainda que em uma situação indigna para as pessoas”, diz o professor de Direito Civil da USP Eduardo Tomasevicius. “A redação atual é antiga, da década de 1960”.
A inovação foi criticada pelo Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), que tem como presidente de honra o advogado Ives Gandra Martins da Silva. “Nossa legislação concede ao paciente o direito de recusar um tratamento, mas essa recusa é válida se, e somente se, não colocar em risco imediato a sua vida, não violar direitos de terceiros e, especialmente, se o paciente tiver capacidade cognitiva plena e autonomia civil para tomar essa decisão”, criticou o instituto no ano passado. Para o presidente do IBDR, o advogado Thiago Rafael Vieira, a redação confunde ortotanásia e eutanásia.
A ortotanásia se aplica a pacientes que já estão no processo de morte, na fase terminal, o que difere da previsão do artigo 15, que é ampla, possível em uma “futura incapacidade”. “Confundir a eutanásia com a ortotanásia abre precedente para abusos com base em decisões precipitadas, diagnósticos incorretos ou pressões externas, inclusive por questões ideológicas, econômicas e até mesmo questões existenciais a respeito da medida da inviolabilidade da vida humana”, explica Vieira, doutor em Direito pela Universidade Mackenzie.
O que irá mudar na prática
- COMO É HOJE
Aedo: Desde o ano passado, uma pessoa pode deixar registrada em forma digital a intenção de doar coração, córneas, fígado, intestino, medula, músculo esquelético, pâncreas, pele, pulmão, rins e valva. O meio para isso é a Autorização Eletrônica de Doação (Aedo) que pode ser feita pelo site aedo.org.br ou no aplicativo e-notariado. A partir do preenchimento do formulário, um cartório é selecionado para que se providencie a autorização com reconhecimento da assinatura por autenticidade. A declaração com a assinatura reconhecida é recebida por e-mail.
Autorização da família: Mesmo com a Aedo ou outra forma de expressão de desejo de doar, a família é abordada por profissionais de saúde, e pode negar que o procedimento seja executado. A abordagem pode ser feita também com parentes de quem não manifestou essa intenção mas é um possível doador de órgãos em uma UTI.
- COMO DEVE FICAR
Vale o desejo final: A mudança proposta na reforma do Código Civil prevê que a vontade do doador em potencial morto vai prevalecer, ainda que sem anuência de parentes.
Foto: Agência Brasil
(Com O Globo)