Código Civil

Autorização para doar órgãos não terá de ser mais confirmada pela família

Novidade será introduzida pelo novo Código Civil. No caso de recusa de doação, decisão precisa ser antecipada por escrito.

18/05/2025, 18:00
Autorização para doar órgãos não terá de ser mais confirmada pela família

Rio de Janeiro, RJ - Apresentado no fim de 2024 e em tramitação no Senado, o projeto que muda o Código Civil prevê a eliminação de uma barreira para a doação de órgãos no Brasil. Se a pessoa tiver deixado registrada a intenção de ser um doador, o procedimento não poderá mais ser impedido pela família, como é possível atualmente.


Segundo o Ministério da Saúde, em 2023, nas 8.180 entrevistas com parentes para autorizar a doação, houve 3.465 recusas, o equivalente a 42,4% do total.


Em março do ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Colégio Notarial do Brasil lançaram um dispositivo que facilita o registro da vontade de doação em cartórios: a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo), que pode ser dada pelo aplicativo e-notariado ou pelo site aedo.org.br.


A partir do preenchimento de um formulário, um tabelião confirma a intenção de doar e ambos assinam digitalmente a autorização, que vai para um banco de dados. Após o falecimento de um doador, os médicos credenciados podem verificar se ele assinou o documento.


Mas a facilitação proporcionada pelo Aedo não eliminou a necessidade de autorização da família. A entrevista com parentes é feita por equipes especializadas que acompanham os casos nas Unidades de Tratamento Intensivo dos hospitais, ao identificarem um potencial doador.


O Relatório de Doação do Ministério da Saúde de 2023 aponta que o Centro-Oeste é a região do país onde houve mais negativas (58,9%), seguida do Norte (57,9%) e do Nordeste (55,7%). No Sul e Sudeste, os percentuais de recusa são de 34,8% e 35,2%, respectivamente.


O fim da necessidade da entrevista valerá para o artigo 14 do Código Civil, que diz ser válida a “disposição gratuita do próprio corpo” após a morte para fins científicos e altruísticos. Para a professora de Direito Civil da Universidade Federal de Minas Gerais Elena Gomes, será uma “alteração positiva”.


“Será respeitada a vontade da pessoa ainda que ela não esteja mais aqui”, resume a professora. “Se ela se colocou a favor da doação, é mais do que razoável que essa sua vontade seja respeitada, assim como é respeitada a vontade testamentária dela quanto ao próprio patrimônio”,o3s compara.


A especialista em bioética Carla Carvalho, também professora da UFMG, apoia a mudança, e lembra que, caso não haja a manifestação expressa, o parente continua sendo consultado.


“O familiar tem que ser chamado para se manifestar para ajudar a entender o que queria o familiar quando ele não deixou por escrito”, recomendou. “A vontade, no que diz respeito à existência, tem de ser do próprio sujeito”, resume a especialista.


Ex-presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, o nefrologista Gustavo Fernandes Ferreira acredita que há uma tendência das equipes acabarem respeitando o posicionamento do parente presente na morte do doador e prefere apostar no convencimento:


“Devemos ir no caminho que sempre fomos, da conscientização. Achamos que a discussão deva ser com a família, com todo mundo. O nosso programa de transplantes é forte, resistente e sempre saiu vitorioso”.


Recusa a tratamento


Outra alteração tratada no projeto que muda o código diz respeito à recusa de tratamento médico. O artigo 15 do Código Civil, de 2002, já previa a possibilidade de recusa. Mas o texto em debate suprime a expressão “com risco de vida” da frase “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”. Para Gomes, a alteração elimina uma dúvida.


“Esse trecho fez com que parte da doutrina interpretasse que, se o tratamento não ocasiona risco de vida, o paciente não tem voz e o médico pode seguir na contramão da sua vontade, o que, do ponto de vista bioético, é inaceitável”, explica a professora da UFMG.


O projeto também permite que pacientes deixem orientações antecipadas quanto a desejarem ou não se submeter a determinados tratamentos médicos e cirúrgicos em situações futuras de incapacidade, e indicar um representante para a tomada de decisões a respeito da saúde, com validade de cinco anos.


O novo Código Civil também deverá determinar que a recusa a se submeter à internação hospitalar, intervenção cirúrgica, exame e tratamento médico deve ser tomada por pacientes “plenamente informados por médicos sobre os riscos atuais de morte e agravamento de seu estado de saúde”. A decisão caberá apenas a maiores de idade que não sejam considerados incapazes ou relativamente incapazes.


Para especialistas, a redação proposta consolida práticas já aceitas na Justiça e pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Em 2006, o conselho já havia acolhido a ortotanásia, como a prática é conhecida. Seis anos depois, passou a admitir a validade das manifestações antecipadas de quem optou pela recusa de determinados tratamentos.


“Antes tínhamos uma visão muito protetiva, com influência religiosa, na qual se levava a vida adiante a qualquer custo, ainda que em uma situação indigna para as pessoas”, diz o professor de Direito Civil da USP Eduardo Tomasevicius. “A redação atual é antiga, da década de 1960”.


A inovação foi criticada pelo Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), que tem como presidente de honra o advogado Ives Gandra Martins da Silva. “Nossa legislação concede ao paciente o direito de recusar um tratamento, mas essa recusa é válida se, e somente se, não colocar em risco imediato a sua vida, não violar direitos de terceiros e, especialmente, se o paciente tiver capacidade cognitiva plena e autonomia civil para tomar essa decisão”, criticou o instituto no ano passado. Para o presidente do IBDR, o advogado Thiago Rafael Vieira, a redação confunde ortotanásia e eutanásia.


A ortotanásia se aplica a pacientes que já estão no processo de morte, na fase terminal, o que difere da previsão do artigo 15, que é ampla, possível em uma “futura incapacidade”. “Confundir a eutanásia com a ortotanásia abre precedente para abusos com base em decisões precipitadas, diagnósticos incorretos ou pressões externas, inclusive por questões ideológicas, econômicas e até mesmo questões existenciais a respeito da medida da inviolabilidade da vida humana”, explica Vieira, doutor em Direito pela Universidade Mackenzie.


O que irá mudar na prática


- COMO É HOJE


Aedo: Desde o ano passado, uma pessoa pode deixar registrada em forma digital a intenção de doar coração, córneas, fígado, intestino, medula, músculo esquelético, pâncreas, pele, pulmão, rins e valva. O meio para isso é a Autorização Eletrônica de Doação (Aedo) que pode ser feita pelo site aedo.org.br ou no aplicativo e-notariado. A partir do preenchimento do formulário, um cartório é selecionado para que se providencie a autorização com reconhecimento da assinatura por autenticidade. A declaração com a assinatura reconhecida é recebida por e-mail.


Autorização da família: Mesmo com a Aedo ou outra forma de expressão de desejo de doar, a família é abordada por profissionais de saúde, e pode negar que o procedimento seja executado. A abordagem pode ser feita também com parentes de quem não manifestou essa intenção mas é um possível doador de órgãos em uma UTI.


- COMO DEVE FICAR


Vale o desejo final: A mudança proposta na reforma do Código Civil prevê que a vontade do doador em potencial morto vai prevalecer, ainda que sem anuência de parentes.


Foto: Agência Brasil

(Com O Globo)

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