Esquecidos

Após dois anos de 'guerra ignorada', Sudão enfrenta maior crise humanitária do mundo

Conflito já matou milhares de pessoas, deslocou 13 milhões de habitantes e deixou metade da população com fome; país paga preço pela inação internacional.

20/04/2025, 08:00
Após dois anos de 'guerra ignorada', Sudão enfrenta maior crise humanitária do mundo

Londres, ING - Dois anos após o início de uma sangrenta disputa entre dois generais, o Sudão está sofrendo a maior crise humanitária do mundo e seus civis continuam pagando o preço da inação da comunidade internacional, que insiste em "desviar o olhar", alertam ONGs, autoridades e as Nações Unidas.


O conflito já matou dezenas de milhares de pessoas, provocou o deslocamento de 13 milhões de habitantes e deixou metade da população com fome, mas até o momento não tem uma conclusão pacífica à vista, com os esforços diplomáticos frequentemente deixados de lado por outras crises, incluindo as guerras na Ucrânia e em Gaza.


"Nos últimos dois anos, assistimos a um padrão insidioso de desumanização na forma como a guerra está sendo conduzida", afirmou a presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Mirjana Spoljaric, em nota. "Civis são mortos e feridos, as suas casas são saqueadas e os seus meios de subsistência são destruídos.


A violência sexual é desenfreada e gera traumas que reverberarão por gerações. Agentes humanitários e socorristas são atacados deliberadamente enquanto realizam o seu trabalho de salvar vidas".


Os combates neste país do leste da África começam em 15 de abril de 2023, entre as tropas dos dois generais que tomaram o poder em um golpe de Estado em 2021, mas romperam e passaram a disputar o controle do país: o comandante do Exército, Abdel Fatah al-Burhan, líder de facto do Sudão, e seu então número dois, Mohammed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti, comandante do grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (FAR).


Dagalo, inclusive, declarou nesta terça-feira a formação de um governo rival. “Neste aniversário, afirmamos com orgulho a formação de um governo de paz e unidade”, anunciou o general no Telegram. Segundo ele, haverá uma “nova moeda” e “novas carteiras de identidade”.


Antes aliados, os dois passaram a divergir sobre os planos de integração das FAR ao Exército oficial, uma condição crucial do acordo final para a retomada da transição democrática no Sudão, que teve início em 2019, com a queda do ditador Omar al-Bashir após três décadas no comando.


O palácio presidencial em Cartum, a capital, foi ocupado pela facção paramilitar logo no início do conflito. Depois de tomar o complexo, as FAR rapidamente assumiram o controle da cidade, forçando o governo alinhado ao Exército a fugir para Porto Sudão, na costa do Mar Vermelho.


A capital virou um campo de batalha em poucas horas, com cadáveres nas ruas e centenas de milhares de pessoas em fuga. Aqueles que optaram por ficar na cidade tiveram que lutar para sobreviver.


“Eu peso metade do que pesava antes da guerra”, disse à AFP Abdel Rafi Hussein, de 52 anos, que viveu sob o controle das FAR na capital até o mês passado, quando o Exército retomou o controle da cidade. “Estamos seguros [agora], mas não temos água, nem energia elétrica. A maioria dos hospitais não funciona”.


A reconquista de Cartum e do palácio presidencial pelo Exército no final do mês passado representou uma virada após mais de um ano de derrotas. Muitos civis comemoraram o que consideraram uma "libertação" após meses sob o jugo das FAR, acusadas de genocídio, saques e violência sexual.


A cidade, porém, está parcialmente destruída e as munições que não explodiram representam um grave problema de segurança. Zainab Abdelrahim, uma mulher de 38 anos, voltou no início de abril ao norte de Cartum com seus seis filhos e mal reconheceu sua casa, que foi saqueada.


“Tentamos recuperar o essencial, mas não temos nem água, nem energia elétrica, nem medicamentos”, disse à AFP.


'Desviar o olhar'


As FAR prosseguem com a ofensiva em Darfur, uma ampla região do oeste do Sudão, assolada pela fome, com o objetivo de conquistar El Fasher, a última capital regional ainda sob o controle do Exército oficial - que, nesta terça-feira, informou ter efetuado, "com sucesso", ataques aéreos contra posições das FAR ao nordeste da cidade.


“O Sudão está pior do que nunca”, disse Elise Nalbandian, gerente regional de defesa de direitos da Oxfam, organização internacional que atua para acabar com a pobreza, a desigualdade e a injustiça, ao jornal britânico The Guardian. “A maior crise humanitária, a maior crise de deslocamento, a maior crise de fome. Está quebrando todos os tipos de recordes errados.”


O Reino Unido sediou nesta terça-feira um encontro de 20 países do leste da África e da Europa na tentativa de retomar as negociações de paz. Durante a reunião em Londres, as autoridades se comprometeram a mobilizar mais de 800 milhões de euros adicionais (cerca de R$ 5,2 bilhões) em ajuda para o Sudão. Nenhum das partes beligerantes, porém, compareceu ao evento.


“Dois anos é muito tempo. A guerra brutal no Sudão destruiu a vida de milhões de pessoas e, apesar disso, grande parte do mundo continua desviando o olhar”, lamentou o ministro britânico das Relações Exteriores, David Lammy.


O alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, afirmou que o Sudão sofre com a "indiferença do mundo".


"Os sudaneses estão cercados por todos os lados - pela guerra, por abusos generalizados, indignidade, fome e outras dificuldades. E enfrentam a indiferença do mundo exterior, que nos últimos dois anos demonstrou pouco interesse em trazer paz ao Sudão ou alívio aos seus vizinhos", declarou em nota, antes de alertar que "continuar olhando para o outro lado terá consequências catastróficas”.


Por sua vez, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou na segunda-feira que os civis "continuam sendo os mais castigados" pela guerra.


O número exato de mortos é desconhecido devido ao colapso do sistema de saúde, mas o ex-enviado dos EUA Tom Perriello mencionou estimativas de até 150 mil pessoas. Os dois lados foram acusados de atacar civis, bombardear residências e bloquear a ajuda humanitária.


Neste contexto, quase 25 milhões de pessoas enfrentam um cenário de grave insegurança alimentar e oito milhões estão à beira da fome. Segundo o Unicef, 2.776 crianças morreram ou foram mutiladas em 2023 e 2024, contra 150 de 2022, e é provável que o número real seja maior.


Tanto as FAR como o Exército foram acusados de cometer crimes de guerra no decurso do conflito. Em janeiro deste ano, os EUA declararam formalmente que os paramilitares sudaneses tinham cometido genocídio, o que constituiu a segunda vez em menos de 30 anos que um crime desse tipo foi prepetrado no Sudão.


Houve violações "em larga escala" do direito internacional humanitário no conflito, disse Daniel O'Malley, chefe da delegação do CICV no Sudão, ao Guardian. “Toda a população civil, independentemente de onde esteja no país, foi basicamente encurralada entre uma, duas ou mais partes. E eles têm suportado o peso de tudo. Os números são simplesmente impressionantes", afirmou.


Os paramilitares anunciaram no domingo que tomaram o controle do campo de deslocados de Zamzam, em Darfur, perto de El Fasher, onde mais de 500 mil pessoas haviam encontrado refúgio. Segundo a Organização Internacional de Migração da ONU, até 400 mil foram deslocadas da região desde o fim de semana.


"Os ataques em larga escala (...) deixaram bem claro o custo da inação da comunidade internacional, apesar de meus repetidos avisos sobre o risco elevado para os civis na área”, disse o chefe de direitos da ONU, Volker Türk, em uma declaração. “Os ataques exacerbaram uma crise humanitária e de proteção já terrível em uma cidade que tem sofrido um cerco devastador das FAR desde maio do ano passado."


Segundo a ONU, mais de 2,1 milhões de deslocados poderiam voltar para Cartum nos próximos seis meses, caso as condições de segurança e as infraestruturas permitam.

“Não vemos o nível de atenção internacional para o Sudão como vemos para outras crises”, disse Leni Kinzli, chefe de comunicações do Programa Mundial de Alimentos para o Sudão, ao Guardian.


“Não deveria haver competição entre as crises. Mas, infelizmente, estamos vendo que, com tudo o que está acontecendo no mundo, outros conflitos, outras crises humanitárias e outras coisas que estão nas manchetes, infelizmente o Sudão é - eu nem chamaria de esquecido - ignorado.”


Foto: AFP

(Com O Globo)

Mais matérias Mundo