De “Paris n’América” a "Nova Délhi": a derrocada de Belém, que um dia foi metrópole da Amazônia

Para sair da encruzilhada, cidade precisa extirpar toda sorte de mediocridade, demagogia, populismo e corrupção.

Por Alex Fiúza de Mello*

02/06/2024, 08:17

Com o modelo belle époque introduzido por Antônio Lemos praticamente apagado, cidade afundou nos escombros e no caos generalizado/Fotos: Divulgação.


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o início do Século XX, em pleno apogeu do “ciclo da borracha”, as elites políticas locais pensaram e projetaram um plano urbanístico para Belém influenciadas pelas contribuições da arte, da arquitetura e do esplendor do modelo parisiense da belle époque do final do Oitocentos, parâmetro cultural mais avançado e arquetípico de época. Outorgaram, assim, sem qualquer espasmo de parvidade, largueza e denodo aos seus propósitos e utopias, ao ponto de imaginarem, com ousadia, na desafiadora latitude dos trópicos, uma Paris n’América. 

Tal idealização já manifestava uma visão de cidade em nada “doméstica”, acanhada, pueril, mas dilatada sobre o mundo e alinhavada ao pressentível porvir, expressa na busca de uma identidade de invocação “global” ao principal núcleo urbano da Amazônia - região, desde outrora, de forte apelo no imaginário internacional em razão de seus estratégicos e ambicionados estoques naturais - como a então proeminente gomma brasiliensis - e por representar a maior reserva florestal, ambiental e de biodiversidade do planeta.

A Belém da belle époque e a Belém da balbúrdia: identidade anulada/Fotos: Divulgação

Nasce uma identidade

Antônio Lemos, um dos principais líderes desse movimento e ativo intendente - prefeito - de ocasião, intelectualmente bem formado e politicamente arrojado, bem sabia que toda cidade, para existir e sobreviver no tempo, precisa de uma “identidade”, de uma feição própria e singular que a diferencie - e a destaque - no conjunto da totalidade dos diversos aglomerados humanos, invariavelmente plasmados, desde o advento da Era Moderna, em uma imensa, dinâmica e irrefreável rede global de trocas. E que reside justo nessa percepção - a consciência da interdependência mundial de câmbios e oportunidades - a chave de um projeto urbano progressista e sustentável, com seu escopo e desígnio bem delineados em idêntica dimensão e tonalidade.

É essa “identidade”, essa “singularidade” - que desde o século passado vinha sendo paulatinamente construída com relativo sucesso - que Belém, por conjunturas históricas e, mesmo, omissão ou inépcia de suas lideranças políticas mais recentes, parece ter perdido com o passar das derradeiras sazões. Desvaneceram a “Paris n’América” e a “Metrópole da Amazônia”, carecendo o sítio, nos dias atuais, de um distintivo à altura de sua história, cultura e simbolismo. Algo maior e mais significativo que as conhecidas insígnias “Cidade das Mangueiras”, ou “Cidade Criativa da Gastronomia”, ultimamente conferida pela Unesco.

Amazônia para o mundo

Sim, porque Belém, além de tudo o que guarda e acumula de sua invulgar e admirável trajetória histórica - praças, ruas, igrejas, casarios, palacetes, monumentos e demais logradouros - somada às memórias intangíveis do patrimônio imaterial e afetivo de múltiplas gerações é, de fato, por sua especial e atrativa localização - “esquina” da desembocadura do caudaloso rio Amazonas com o oceano Atlântico -, o verdadeiro “portal” da Amazônia para o mundo - ao mesmo tempo que a saída marítima mais estratégica do Brasil para a exportação de suas riquezas aos principais mercados do planeta.

Um trem descarrilhado

Por desleixo, irresponsabilidade ou má condução política, expressas, conjuntamente, na mediocridade mental e na índole corrupta que passou a caracterizar, nas últimas décadas, grande parte da classe política local, fato é que se acumularam no tempo gravíssimos e inadiáveis problemas urbanos, sempre postergados em seu real e congruente enfrentamento, e que tornaram Belém, hoje, provavelmente - pelo passivo e contencioso legados -, a capital mais difícil de ser gerenciada dentre todas as do País.

Perderam-se, no transitar das estações, a utopia urbana de antanho, a capacidade intrépida e empreendedora dos dirigentes, a magnanimidade de uma mentalidade verdadeiramente belemita, comprometida com o bem-estar dos cidadãos e a sua identidade. Da sonhada “Paris n’América”, ousadamente idealizada no passado, restaram os escombros e o caos generalizado das malfeitorias que se seguiram, estampados num cenário anárquico e desgovernado, argutamente cunhado pelo saudoso jornalista paraense Juvêncio Câmara de “Nova Délhi” - em provocativa alusão à homônima e babélica cidade indiana.

Moldura devastadora

Decerto, o que se observa, infelizmente, pelo andar da carruagem, a cada nova eleição e gestão municipal que se sucede, é que, na moldura desse devastador e fatídico quadro, Belém vai afundando em suas “baixadas” de lama, lixo e violência, ante o desdém e o escárnio desmesurado de seus fatídicos e ignóbeis governantes. Ao que implica considerar que jamais será possível uma luz no fim do túnel sem que haja um gigantesco esforço coletivo, suprapartidário e devidamente pactuado entre todos os cidadãos e principais lideranças da sociedade civil, em sentido contrário, aprumado na mesma dimensão e escala do tamanho do desafio. 

Cleptocracia triunfante

Visões meramente ideológicas, sectárias, partidarizadas ou demagógicas, fomentadas e capitaneadas pela tradicional e conhecida cleptocracia triunfante - sabidamente enriquecida pela pilhagem do erário público -, não contribuirão em nada - como demonstra a história - para o sucesso deste dificílimo e descomunal empreendimento, que não poderá indefinidamente capitular, pela natureza de sua urgência e emergência, a adversários de ocasião ou a resistências de cunho meramente politiqueiro, sob pena de fracasso a priori do intento - como, aliás, tem sido a marca de todas as administrações municipais nas últimas décadas.

Metamorfose cultural

A população, há muito, está cansada, frustrada, exaurida diante de tanto descaso, de tanta incompetência, de tanta desfaçatez de seus falsos representantes. Impõe-se, pois, às novas gerações, uma radical e extensiva metamorfose da cultura política local, priorizando-se o interesse do conjunto da sociedade sobre aqueles tradicionalmente corporativos e eminentemente privatistas - patrimonialistas -, como de costume. Ou se faz assim, de uma vez por todas, ou toda e qualquer iniciativa será, ipso facto, em vão, inoperante, infrutífera. 

Urge, portanto, a irrupção de uma nova mentalidade política; de um novo tipo de político e de gestor público. Uma renovação profunda e radical da forma de conceber e conduzir a atividade política, pautada, não mais - comme d’habitude -, em “projetos de poder” - de grupos e facções em disputa -, mas de sociedade - da busca honesta pela qualidade de vida e sustentabilidade socioeconômica de longo prazo de toda a coletividade.

Algum lugar do passado

Afinal, Belém, em pleno Século XXI, ainda não saiu do seu tradicional, incômodo e crônico patamar de subdesenvolvimento social, econômico e político. Freou, em algum lugar do passado, a sua trajetória virtuosa, interrompendo as inflexões que vinha realizando em favor de um futuro mais digno e promissor.

Sim. Não haverá uma “Nova Belém” sem uma nova política; sem novos políticos, de mentalidade genuinamente republicana, despregada e redimida da armadilha da servidão ideológica e do oportunismo falsário e demagógico. Pois sem compromisso e amor para com a causa, somado ao conhecimento, ao espírito empreendedor e à ética, não existe alternativa ao subdesenvolvimento; não existe superação da acronia e do anacronismo; não existe libertação da condição de irrelevância periférica - de não-lugar, a que ficou reduzida, em sua atual e artificial insignificância, a capital paraense.

Saída pela tangente

A atual encruzilhada de Belém é, pois, em alguma medida, a mesma de toda a sociedade brasileira, na presente - e conturbada - conjuntura: república ou patrimonialismo; civilização ou barbárie - panorama que, para ser enfrentado positivamente, necessita extirpar do caminho toda sorte de mediocridade, demagogia, populismo e corrupção, ainda imperantes.


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