Brasília, DF - Um velho clichê do rock’n’roll (tão verdadeiro como a eficácia da combinação baixo-guitarra-bateria) diz que o músico é pago para viajar, acordar cedo, hospedar-se em lugares nem sempre salubres, verificar o som e outros equipamentos — a hora do show é pura diversão. Sendo assim, um integrante de uma banda, na estrada, se vê com tempo demais nas mãos (qual é a música que diz isso mesmo?*).
Na juventude, essas longas folgas podem ser usadas de forma questionável, mas, depois de crescidinhos, os artistas precisam encontrar passatempos mais saudáveis. Ao partir para as comemorações dos 30 anos da Legião Urbana, em 2015, o baterista Marcelo Bonfá resolveu dar vazão a uma velha paixão, com o uso de uma moderna ferramenta.
“Sempre gostei de desenhar”, lembra ele, cujas ilustrações estão em encartes de discos da Legião e na capa de “Música p/ acampamentos”, registro ao vivo lançado em 1992. - Em vários momentos da turnê, a gente fazia dois shows por fim de semana, e eu tinha uns três dias para estar em casa, ver meus filhos, netos. O resto era na estrada.
Muita estrada
No mesmo ano de 2015, ele tinha comprado um iPad, ainda da primeira geração, e encantou-se com o aplicativo Procreate, que lhe permitiu levar todos os recursos de um estúdio de criação consigo para a estrada. O artista plástico Renato Alarcão ajudou nas manhas do desenho (“Tenho um traço meio roots”, define Bonfá).
“De certa forma, ficamos dez anos em turnê”, diz ele sobre a formação de sua bateria ao lado do guitarrista Dado Villa-Lobos, acompanhados pelo ator e cantor André Frateschi e por músicos como Lucas Vasconcelos nas guitarras e violões e Mauro Berman no contrabaixo. “Foram muitos shows, muitos mais do que a Legião fez ao longo de toda a sua existência. E eu ainda fui atacado pelo herpes-zóster em 2023, uma dor horrível que me fez cancelar um show pela primeira vez na vida.”
Ou seja: horas e horas em aviões, ônibus, hotéis e camarins, com o fiel tablet — que, de quebra, ainda era usado para ouvir a trilha sonora adequada, além de desenhar, desenhar, desenhar.
O resultado está em “A minha banda preferida de todos os tempos”, livro em quadrinhos totalmente escrito e ilustrado pelo baterista que a editora Brasa lança em setembro (atualmente em pré-venda). A HQ conta a vida de Bonfá desde o nascimento (“Tinha que começar em algum lugar, né?”, diz ele), em Itapira, no interior paulista, até a mudança para Brasília nos anos 1970 e o mergulho na cena punk da qual saíram a Legião, a Plebe Rude, o Capital Inicial, todos frutos da autodenominada tchurma, cantada em verso e prosa em clássicos do rock brasileiro.
‘Acredito que tudo termina bem’
Marcelo Bonfá lembra a contribuição de nomes como Evandro Mesquita. “Liguei para muita gente para conferir as histórias que estavam na minha memória”, conta. “E, curiosamente, todos apareciam do nada quando eu pensava neles. Amigos como o Dinho (Ouro Preto, cantor do Capital) e o Dado estavam por perto, mas gente como Evandro Mesquita, com quem eu falo raramente, quando eu lembrava que tinha que consultar, aparecia no dia seguinte. Por exemplo: liguei para o Fred Nascimento, guitarrista que tocou com a gente. “Bonfá, há quanto tempo!”, disse ele. “Sabe com quem eu falei ontem?” Ligado, respondi: “Com o (baixista) Bruno Araújo. Pois é, tô te ligando porque preciso falar com ele.”
Livros, consultas à internet e papos com personagens das vidas dele e da banda foram formatando o livro, que, além de descrever a cena punk candanga - tendo o seminal Aborto Elétrico como banda-símbolo -, mostra a Legião chegando ao Rio para gravar na EMI, em Botafogo, com o diretor artístico Jorge Davidson, outra fonte, assim como Nelson Motta.
“Não acho que o livro tenha grandes revelações sobre a Legião, que tem uma história conhecida, apesar de pouco documentada em fotos e vídeos”, diz ele, que não revela, por enquanto, o que escreveu sobre questões como o relacionamento interno entre os músicos e a doença e morte do cantor Renato Russo, em 1996. “Mas claro que toda história tem várias versões, e agora o meu lado estará documentado.”
Entre os poucos trechos liberados dos cerca de 400 desenhos estão o começo da vida em Itapira (cidade conhecida por ser berço do jogador Bellini, lenda da seleção brasileira), os primeiros ensaios com Renato em Brasília (a banda começou apenas com os dois, o cantor no contrabaixo, e passou por vários guitarristas até chegar a Dado) e alguns outros momentos. Dos dois catastróficos shows que acabaram em destruição, o de Brasília em 1988 e o do Jockey Club, no Rio, em 1990, apenas o primeiro está retratado.
Embora siga fazendo shows solo, em uma formação que inclui o filho JP Bonfá na guitarra (“Ele toca tudo!”, diz o pai, orgulhoso) e uma apresentação no Japão neste mês, Bonfá diz que não deve voltar aos shows com Dado, que celebraram os discos da Legião do começo, em 1985, até “V”, de 1991 (mais dois foram lançados com Renato Russo ainda vivo, “O descobrimento do Brasil”, de 1994, e “A tempestade ou o livro dos dias”, em 1996).
“Minha banda preferida de todos os tempos” (há aí um jogo de palavras do tempo cronológico com o musical) não se aprofunda na polêmica dos ex-integrantes da banda com Giuliano Manfredini, filho de Renato e dono da Legião Urbana Produções, que não permitiu o uso do nome por Dado e Bonfá (e proibiu o uso das músicas em uma série documental quase pronta, que tinha artistas diversos cantando as músicas da banda; tudo isso em nome de um documentário “oficial”, “Só o amor”, em produção há quatro anos e que ainda não foi lançado).
“Sempre me dei bem com a família do Renato”, diz Bonfá. “O pai dele me emprestava o carro quando eu tinha 18 anos para a gente ir ensaiar. Às vezes a gente tem que explicar o óbvio, é difícil. Mas acredito que tudo termina bem. Se não está bem, é porque não terminou.”
* “Too much time on my hands” (“Tempo demais nas minhas mãos”) é uma música da banda Styx, de 1981
Foto: Reprodução
(Com O Globo)