Rio de Janeiro, RJ - Um novo estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, identificou que não existe um limite considerado seguro para o consumo de carnes processadas, como presunto, salsicha, bacon, mortadela, linguiça, salaminho, entre outros. Mesmo uma porção por dia já eleva o risco de câncer de intestino e de diabetes.
O trabalho, publicado na revista científica Nature Medicine, analisou outros 78 estudos sobre o tema em busca de uma relação entre os alimentos e os problemas de saúde. Diversas evidências já apontavam para os malefícios dos ultraprocessados, mas os cientistas quiseram estimar o quanto uma porção ao dia já seria suficiente para observar a elevação no risco.
“Os aumentos uniformes no risco à saúde com o aumento do consumo de carne processada sugerem que não há uma quantidade ‘segura’ de consumo no que diz respeito ao risco de diabetes ou câncer de intestino (...) Com base em nossas descobertas, as diretrizes alimentares devem destacar os potenciais riscos à saúde associados ao consumo mesmo de pequenas quantidades de carne processada”, escrevem os autores na pesquisa.
O estudo analisou ainda uma relação entre o consumo de bebidas açucaradas e gordura trans com os dois desfechos de saúde (câncer e diabetes), além de para doença isquêmica do coração. A carne processada foi o alimento com os maiores aumentos de risco.
Os dados mostraram que o consumo de uma porção por dia de carne processada, que variou entre 0,6g e 57g nos trabalhos, já elevou em pelo menos 11% o risco de diabetes em relação aos que não ingeriam o alimento. Para o câncer de intestino, cuja porção nos estudos era de 0,78g a 55g, as chances aumentaram no mínimo 7%.
“É um estudo bem interessante. Mesmo que os efeitos sejam modestos ou moderados, o impacto populacional pode ser alto. Pequenos aumentos de risco multiplicados por milhões de pessoas resulta numa carga global de doença bem alta, e essas doenças são muito prevalentes. Vale a recomendação de reduzir ou evitar esses alimentos”, afirma Clayton Macedo, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
As estimativas para os problemas de saúde foram consideradas conservadoras pelos cientistas, ou seja, o risco pode ser ainda maior. Os estudos analisados também sugeriram uma maior probabilidade de desenvolver doença isquêmica do coração, porém o nível de evidência disponível foi considerado baixo.
Em relação às bebidas adoçadas, a revisão encontrou um aumento de ao menos 8% no risco de diabetes e de 2% no de doença cardíaca. A porção, neste caso, era de 1,5g até 390g, o equivalente a uma lata de refrigerante de 350 ml, em média. Já para a gordura trans, um consumo que representava de 0,25% a 2,56% das calorias diárias foi associado a um risco 3% maior de doença isquêmica do coração.
“O estudo avaliou a relação dose-resposta dos alimentos com as doenças analisadas e encontrou evidências para justificar esforços e políticas robustas que promovam a redução do consumo de carne processada, bebidas adoçadas e gorduras trans, particularmente as trans produzidas industrialmente, com o objetivo de diminuir o risco dessas doenças crônicas tão prevalentes”, diz Natália Oliveira, pesquisadora do Observatório de Epidemiologia Nutricional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Centro Universitário Arthur de Sá Earp Neto (Unifase).
Para Marcella Garcez Duarte, nutróloga, professora e diretora do departamento de Fitoterápicos e Nutracêuticos da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), o trabalho “reforça com dados consistentes o impacto do padrão alimentar moderno baseado em ultraprocessados na saúde global”.
“Ainda assim, é importante ressaltar que a interpretação desses achados deve ser feita com senso crítico, entendendo que o impacto na saúde está relacionado ao conjunto da dieta, à frequência, à qualidade dos ingredientes e ao contexto individual. Não devemos sair demonizando os alimentos”, complementa.
Riscos de ultraprocessados
O novo estudo se soma a um corpo cada vez maior de publicações que realçam os efeitos negativos do consumo de alimentos ultraprocessados. Uma grande revisão de 45 estudos sobre o tema publicada na revista científica The BMJ, no ano passado, acompanhou dados de quase 10 milhões de pessoas e encontrou uma associação com um risco aumentado para 32 agravos de saúde diferentes.
De forma mais sólida, os cientistas afirmam que há evidências convincentes que apontam um risco 50% maior de morte relacionada a doenças cardiovasculares; 53% de transtornos mentais comuns e de 48% de ansiedade prevalente. Dados robustos também sugerem um risco 12% maior de diabetes tipo 2. Evidências mais fracas, porém consideradas altamente sugestivas, indicaram uma chance 20% maior de morte por qualquer causa; 55% de obesidade; 41% de problemas de sono; 40% de chiado no peito e 20% de depressão.
“Muitos ultraprocessados disponíveis no mercado possuem formulações pobres, com excesso de açúcares adicionados, gorduras saturadas, sódio, aditivos alimentares e calorias em excesso, combinados de forma a estimular o consumo excessivo, interferir na saciedade e favorecer desequilíbrios metabólicos. Esses alimentos também tendem a impactar negativamente a microbiota intestinal, o perfil inflamatório e o metabolismo energético do corpo”, explica Marcella.
Natália acrescenta que os ultraprocessados, graças à sua praticidade e à alta palatabilidade, foram “desenhados” para substituírem os alimentos in natura e minimamente processados, que por sua vez deveriam ser a "base da alimentação”:
“O indivíduo consome o ultraprocessado com essa formulação nociva à saúde em substituição à alimentos que são comprovadamente marcadores da alimentação saudável, ricos em nutrientes como fibras, vitaminas e minerais, como frutas, hortaliças, leguminosas, entre outros.”
Como identificar os ultraprocessados
O conceito de ultraprocessados, que ganhou o mundo, foi elaborado por pesquisadores da USP a partir da criação da classificação Nova, que divide os alimentos e bebidas em quatro grupos. Os in natura ou minimamente processados são aqueles obtidos diretamente da natureza ou que passam por processos simples sem adição de substâncias, mantendo suas características originais, como carne, grãos, leite e frutas.
O segundo grupo diz respeito aos ingredientes culinários processados, que são extraídos de alimentos ou também diretamente na natureza e usados em pequenas quantidades para preparar refeições, como óleos, sal e açúcar. Já os alimentos processados são aqueles que passam por modificações com esses ingredientes para aumentar sua durabilidade e variedade, como pães, queijos e conservas.
Por fim, o quarto grupo engloba os ultraprocessados, que são formulações industriais com diversos aditivos, como corantes, saborizantes e ingredientes modificados, que imitam alimentos naturais, mas com baixo valor nutricional e alto apelo comercial. Alguns exemplos são refrigerantes, salgadinhos, doces, sorvetes, barras de cereal, pães embalados, margarina, macarrão instantâneo, entre outros.
Porém, Marcella, da Abran, defende que os ultraprocessados não devem ser demonizados indiscriminadamente, mas sim terem suas tabelas nutricionais avaliadas criticamente. Um iogurte, por exemplo, pode ser um ultraprocessado, caso seja adoçado, mas impacta na saúde de forma diferente de um macarrão instantâneo ou de uma salsicha.
“O que traz saudabilidade a um alimento é a sua composição de nutrientes e a qualidade dos ingredientes utilizados. Existem produtos processados ou ultraprocessados que são nutricionalmente equilibrados e podem fazer parte de uma alimentação adequada, desde que avaliados com critérios técnicos”, diz.
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(Com O Globo)