Organizadores da COP30 proíbem consumo de açaí, maniçoba e tucupi com medo de "intoxicações"

Favorecida pelo governo Lula para organizar a Conferência em Belém, a OEI mostra que a Amazônia é apenas um ponto no mapa-múndi e pisoteia uma tradição milenar com a decisão.

Por Olavo Dutra | Dedé Mesquita

16/08/2025, 12:00
Organizadores da COP30 proíbem consumo de açaí, maniçoba e tucupi com medo de 
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ique claro desde já: a Organização dos Estados Ibero-americanos, responsável pela organização da Conferência do Clima da ONU em Belém, não passou por nenhum processo de licitação para tal: foi, isto sim, escolhida a dedo pelo governo Lula - favorecida, enfim, com todos os efes e erres, mas acaba de perpetrar um atentado sem precedentes à tradição alimentar da Amazônia ao restringir o cardápio dos participantes da COP30. 

 

Não se tem informações sobre os impactos econômicos da medida, mas parece óbvio que a política se sobrepõe à Amazônia, à qual a Conferência deveria se encaixar/Fotos: Divulgação.

Isso, mais do que atingir em cheio uma tradição milenar, é um golpe no espírito da COP na Amazônia. Afinal, quando escolheu Belém como sede, a ONU sabia mais sobre os prós e contras da cidade do que seus habitantes. E, no português claro, a COP tem que ser o que a Amazônia permite, não o que pensam os engomadinhos de araque.  

Quem vier para a COP30 e quiser experimentar a culinária típica local vai ter que sair da área oficial - as Blue Zone e Green Zone, e se alimentar tipo escondidinho, por conta e risco próprios. É que na última sexta-feira, 15, o edital, publicado três dias antes pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI), veio a público trazendo a proibição de consumo de açaí e tucupi e - por tabela -, de tacacá e a maniçoba e outros produtos regionais. O edital recomenda também a redução do uso de carne vermelha. 

Que fique bem claro: a proibição desses alimentos é apenas dentro da área oficial, onde as discussões serão realizadas e valem para as regras de seleção de operadores de restaurantes e quiosques que funcionarão somente durante o período da COP 30, no Parque da Cidade. 

Desligue o fogo 

A restrição é apenas para o edital dos espaços oficiais, que contemplará um total de 87 estabelecimentos para atendimento da demanda de alimentação entre 3 e 28 de novembro, divididos em seis categorias: VIP internacional; VIP brasileira/regional; italiana; vegana/vegetariana, panamericana; brasileira e regional. A OEI é a responsável por fazer as contratações para o evento de Belém. 

E antes que o “clamor das redes sociais” se torne maior do que já está, desde a sexta-feira o tema das proibições deve ser um dos principais assuntos da audiência pública agendada para a próxima terça-feira, dia 19, conforme o processo seletivo prevê. 

É conversa fiada 

Desde que começaram os preparativos à COP30, um dos pontos era o de que as propostas devem "priorizar alimentos locais, regionais e da estação, devendo incorporar no cardápio até 30% de ingredientes locais e sazonais". A medida visa "fortalecer a agricultura familiar e a economia local, garantindo que ao menos 30% do valor total dos insumos adquiridos sejam provenientes da agricultura familiar, com incentivo a superação desse percentual". 

Nesse ponto, a produção de tucupi, jambu e maniva se enquadra totalmente na premissa da agricultura familiar, mas, com esses itens proibidos, as dúvidas sobre o fornecimento ficaram imensas, uma vez que esses produtos são provenientes do trabalho de pequenos agricultores.  

E o açaí de cada dia? 

Sobre o açaí, a organização alega que tem “risco de contaminação por Trypanosoma cruzi, causador da Doença de Chagas, se não for pasteurizado”, e aponta apenas para “todos os tipos”. O edital não menciona qualquer exceção, como produtos que tenham certificação de pasteurização, como um selo promovido pela Prefeitura de Belém há mais de 10 anos que exige, dentre outras normas, o branqueamento, técnica que consiste em mergulhar o fruto do açaí, acondicionado em um balde vazado, em água potável aquecida à temperatura de 80ºC durante 10 segundos, e sem seguida colocado em água fria, o que garante cerca de 99% de eliminação de todas as impurezas. 

O Pará produz mais de 93% do açaí no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Faz parte do almoço dos paraenses e ainda é distribuído Brasil e mundo afora, seguindo uma série de normas e procedimentos já padronizados. 

Outros alimentos  

O tucupi e a maniçoba, cujos cheiros e sabores fazem parte da identidade cultural da cidade, também estão de fora.  A produção e a comercialização do tucupi são acompanhadas pela Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará), que certificou ao menos 10 fábricas que produzem cerca de 200 mil litros por ano. Além disso, constam como “alto risco de contaminação” maionese, especialmente caseira; ostras cruas e carnes mal passadas e molhos caseiros em geral e doces caseiros com creme.  

Até mesmo os sucos de fruta in natura estão sob restrição: apenas poderão ser usadas polpas pasteurizadas-processadas. Também não pode ter gelo artesanal e não industrializado; alimentos preparados com antecedência e não refrigerados; e produtos regionais sem rotulagem e registro sanitário.  

O descumprimento dessas exigências pode resultar na substituição de itens dos cardápios dos estabelecimentos. Em nota, a reportagem divulgada ao jornal “O Estado de S. Paulo”, a OEI informou que o fornecimento de alimentos na COP30 seguirá regras da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e protocolos da Anvisa para garantir segurança e bem-estar.  

Segundo a declaração, o edital que seleciona operadores de restaurantes e quiosques considera fatores como clima local e armazenamento seguro. O recebimento de propostas dos espaços comerciais segue até 25 de agosto. 

Estupidez e preconceito 

Para Joanna Martins, diretora do Instituto Paulo Martins, entidade que atua na promoção e valorização da gastronomia amazônica, o edital revela preconceito e desconhecimento.  "Estou totalmente chocada com essa informação. Ela é de uma ignorância, estupidez e preconceito cultural indescritíveis. Todos estes produtos locais que estão proibindo são regulados e tem diversos produtores certificados que seguem regras sanitárias que garantem a segurança do produto. Espero que tenha tempo hábil para um diálogo melhor e que possam rever isso", disse. (Com informações da plataforma Amazônia Vox e jornal “Estado de S. Paulo”)  

Doenças relacionadas

Mal de Chagas - o açaí, quando não submetido a tratamento térmico adequado, pode ser contaminado pelo protozoário Trypanosoma cruzi, transmitido pelo inseto triatomíneo, o "barbeiro". A ingestão de açaí contaminado pode levar à doença de Chagas, que pode apresentar sintomas como inchaço, febre e, em casos graves, insuficiência cardíaca. Outras: bactérias como Salmonella, Escherichia coli e Staphylococcus aureus e outras podem contaminar o açaí, causando intoxicações alimentares. Essas intoxicações podem ocorrer devido à falta de higiene na manipulação do açaí ou à contaminação da água utilizada no processamento. 

Ácido cianídrico - o tucupi, em sua forma in natura, contém ácido cianídrico, uma substância tóxica. O processamento adequado, que envolve fervura e fermentação, elimina essa substância, tornando o tucupi seguro para consumo. 

Intoxicações alimentares: a maniçoba, assim como o açaí, pode ser contaminada por bactérias durante o processamento. O consumo de maniçoba contaminada pode causar intoxicações alimentares. Todas essas doenças exigem medidas de prevenção.


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