O que está por trás dos preços de hospedagem para COP30 em Belém, segundo o Le Monde

Narrativas tentam deslocar Amazônia - e a capital do Pará - do centro do debate e levar a Conferência de volta para o eixo Rio-São Paulo-Brasília, onde as elites se sentem mais confortáveis

Por Bruna Balbi| Opinião "Le Monde" Brasil

11/08/2025, 11:00
O que está por trás dos preços de hospedagem para COP30 em Belém, segundo o Le Monde
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uando Belém foi escolhida para sediar o maior encontro mundial do clima, a COP30. o Brasil sinalizou ao mundo que a Amazônia não é floresta exótica a ser explorada, mas uma protagonista política do nosso tempo. E essa escolha foi acertada. A Amazônia não é bastidor: é palco. É aqui que se decide o futuro climático do planeta.

Belém já sediou eventos de grande porte, como o Fórum Social Mundial, o que consolida a noção de que há outros interesses pressionando a COP/Fotos: Divulgação.

Ainda assim, setores do poder público, da mídia, do empresariado e da diplomacia internacional seguem enxergando a região com o olhar colonizador de sempre. Nas últimas semanas, têm se intensificado argumentos como “a cidade não comporta a realização da COP” ou “faltam condições básicas para receber lideranças globais”. O que essa crítica omite é qualquer preocupação real com a garantia da participação popular e dos povos da região.

A narrativa que busca desqualificar a cidade como sede da COP 30 é sintomática de um colonialismo atualizado, que tenta deslocar o centro do debate climático de volta para os polos hegemônicos do país - como o eixo Rio-São Paulo-Brasília -, onde elites políticas e econômicas se sentem mais confortáveis.

É nesse contexto que surge a polêmica sobre os altos preços de hospedagem em Belém e nos municípios do entorno, já noticiados por veículos nacionais e internacionais. E, com ela, uma tentativa velada de sugerir que a cidade não está à altura de sediar o evento.

Belém é capaz, sim

É aí que o debate precisa ser reposicionado. O que está por trás da explosão nos preços não é a suposta incapacidade da cidade ou do povo paraense de receber o mundo. Belém, aliás, já sediou eventos internacionais de grande porte, como o Fórum Social Mundial, com participação popular expressiva e articulação internacional robusta. O que as críticas revelam, na verdade, é o preconceito persistente contra a Amazônia como lugar legítimo de organização política - e a omissão do Estado, que, diante da especulação, escolheu não agir.

 Amazônia ontem e hoje

O olhar externo sobre a Amazônia muda conforme a intenção de controle, uso ou exploração de seus territórios. Quando os povos amazônicos resistem à ocupação, são tachados de selvagens - e a floresta, demonizada. Quando se deseja avançar sobre suas terras, ela se torna um vazio demográfico, como na construção da BR-163. E quando se busca explorá-la economicamente, surgem discursos ambientalistas que, sob o pretexto da conservação, tentam monetizar a floresta e retirar dela seus verdadeiros guardiões. É o que acontece agora com a forte defesa do mercado de carbono.

Discurso e realidade

“Pulmão do mundo. Inferno verde. Reservatório de biodiversidade. Patrimônio da humanidade. Terra de ninguém. Celeiro de recursos naturais.” A lista é longa - e poderia seguir com as muitas terminologias já atribuídas à Amazônia. Mas é sempre importante lembrar: ao falar de Amazônia estamos nos referindo a uma região que ultrapassa 6 milhões de quilômetros quadrados, atravessa nove países da América do Sul e abrange nove estados apenas no Brasil. Não é pouca coisa. Mais da metade do território brasileiro é a Amazônia.

E é preciso repetir isso porque há um descompasso evidente entre discurso e realidade - semelhante ao que se vê nos mapas-múndi, que distorcem proporções e encolhem continentes inteiros. África e América do Sul frequentemente aparecem diminuídas nas representações cartográficas tradicionais, sobretudo quando comparadas aos países que as colonizaram. Mesmo o Brasil - um dos maiores do mundo - costuma ser representado de forma reduzida frente às nações do Norte Global.

Colônia na “colônia”

Nesse mesmo enquadramento imaginário, a Amazônia ocupa um lugar ainda mais marginal: uma colônia dentro da colônia, historicamente explorada até mesmo pelos seus próprios pares. A régua do Norte Global encolhe o Sul – mas nenhum dos dois enxerga a maior floresta tropical do mundo como ela de fato é.

Essa incompreensão não é apenas discursiva, é material. Hoje, a Amazônia é explorada para a produção de soja destinada aos mercados europeu e asiático, com uso intensivo de agrotóxicos. Inundada por lagos de barragens para geração de energia hidrelétrica para indústria e mineração. Temos florestas envenenadas, biodiversidade em colapso, alterações nos regimes de chuva e aumento das queimadas. No lugar de rios, hidrovias e portos para escoação de mercadorias. Um levantamento da Terra de Direitos evidenciou o crescimento acelerado das instalações portuárias na região do Tapajós - principalmente após a criação da Lei de Portos (nº 12.815), em 2013, com um conjunto de irregularidades na concessão de licenças de operação. Em dez anos, o número de portos dobrou no Tapajós.

Por trás das cortinas

O que está em jogo na crítica à capital paraense sediar a COP é a contradição brutal de uma conferência climática sendo realizada no epicentro dos impactos socioambientais que sustentam o modo de vida de quem a organiza.

Belém é uma das principais portas de entrada da Amazônia. Situada onde a floresta encontra o oceano, a cidade é profundamente marcada por sua origem colonial. Isso pode ser percebido nos casarões antigos, nas igrejas barrocas e até no modo de falar das pessoas, mas também nas ausências: no saneamento precário e nas desigualdades urbanas que persistem.

As fragilidades estruturais da cidade, tão visíveis quanto exploradas pela cobertura midiática, não surgiram por acaso. São resultado de séculos de exploração que concentrou riquezas nas mãos de poucos e relegou as maiorias à margem. A Amazônia urbana - Belém incluída - também foi moldada por esse modelo que separa a natureza da humanidade e transforma tudo em mercadoria. Hoje, a conta chega em forma de desigualdade, exclusão e crise climática. Uma conta sentida prioritariamente por gente a quem o Estado segue negando direitos, como a população negra, povos indígenas e tradicionais.

Então, afinal, o que está por trás dos altos preços de hospedagem? Mais do que oportunismo privado, trata-se de uma omissão pública. A especulação avança porque o governo do Estado do Pará - que tem o dever legal e político de agir - escolhe assistir como espectador.

Tem nome e CEP

O Código de Defesa do Consumidor é claro: elevar preços sem justa causa é prática abusiva. Já a Constituição Federal, em seus artigos 23, inciso V, e 24, inciso VIII, estabelece que os Estados possuem competência concorrente com a União para legislar e fiscalizar matérias relativas à proteção do consumidor e para atuar diante de desequilíbrios econômicos.

É indispensável que os entes federativos exerçam essas atribuições com clareza e efetividade. No caso da COP 30, a resposta mais ágil e eficaz deve partir do estado do Pará, cuja atuação se mostra decisiva diante da urgência do problema.

Além disso, o governo estadual, sob a liderança de Hélder Barbalho, está geograficamente, institucionalmente e politicamente mais próximo da situação. É o ente mais apto a agir de forma imediata para conter a especulação comercial e impedir que ela comprometa a imagem do Brasil - e, sobretudo, a participação popular no evento.

A ausência dessas ações por parte do governo revela, no mínimo, um erro político estratégico; e, de forma mais grave, uma falta de compromisso com o protagonismo amazônico. Diante desse cenário, cabe também ao governo federal assumir sua responsabilidade: ou cobra as medidas urgentes do governo paraense ou será corresponsável pelas omissões e seus impactos.

Não basta controlar

Não se trata apenas de controlar preços de hotel. Trata-se de garantir que a COP30 aconteça enraizada no território que mais importa nesse debate, a Amazônia, com a participação ativa de povos indígenas, comunidades tradicionais, camponeses, movimentos sociais, juventudes periféricas e atores internacionais que acreditam em um outro projeto de mundo.

A disputa em torno da COP30 revela muito mais do que uma crise de preços: expõe o incômodo histórico com a centralidade e, sobretudo, com a autonomia da Amazônia. A questão não é apenas onde será realizado um evento, mas quem tem o direito de falar, decidir e existir.

A floresta não está a serviço senão dela mesma. Nenhuma folha cai por acaso - é tempo de jambo e é possível notar as folhas forrando o chão para acolher os frutos que despencam do alto para se tornar alimento. É desse ciclo próprio, generoso e indomável que nascem os saberes, os corpos e as lutas amazônidas. A COP30 em Belém é um chamado à escuta e ao compromisso. Não haverá justiça climática sem reconhecer - e respeitar - esse protagonismo.

Bruna Balbi é assessora jurídica da organização de direitos humanos Terra de Direitos e membro da Cúpula dos Povos Rumo à COP30.

Papo Reto

·A USP - ao lado da FGV - foi uma das instituições contratadas pela organização da COP30 para tocar a estruturação do evento em Belém. 

·A decisão gerou muitas críticas da intelligentsia na região, lamentando o fato de a UFPA ter sido ignorada, apesar de sua expertise e da massa crítica científica e acadêmica para também desempenhar esse papel.

·Pois bem: agora, a USP acaba de confirmar - e convoca a comunidade científica - um de seus maiores eventos nacionais e internacionais - o maior do segmento na América Latina, o Semad, em São Paulo.

·Nada, nada, será exatamente de 10 a 14 de novembro, coincidentemente o mesmo período da COP30, em Belém. 

·Enquanto isso, com autorização da ONU e da coordenação da COP30, a UFPA vai interromper as atividades de aulas no período do evento para sediar diversos eventos acadêmicos nacionais e internacionais.

·O reitor Gilmar Pereira (foto), deve ceder as instalações da Universidade para serem convertidas em hostels e áreas para camping, permitindo a instalação de centenas de tendas móveis para hospedagem. 

·Em uma das maiores reestruturações da sua história, a Bayer demitiu 12 mil funcionários em cargos de tempo integral, em um novo capítulo da crise que assola a gigante alemã.

·O pomo do problema está num dos herbicidas mais utilizados no mundo, o Roundup, que acabou protagonizando milhares de processos judiciais por, supostamente, oferecer risco de câncer.

·A patente do Roundap foi adquirida por US$ 63 bilhões em 2018, mas acabou se transformando no que analistas e investidores chamam de “legado tóxico” da fusão com Bayer-Monsanto.

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